Sunday, June 3, 2007

A "Dance Music" em Portugal - Parte 2




Duas histórias distintas servem para ilustrar este impasse de crescimento: Na Primavera de 1997, um grupo de DJ portugueses e ingleses reuniu-se e criou A Companhia da Música, instalando-se no espaço antes ocupado pelo Climacz (uma discoteca na Estefânia onde tinha despontado três anos antes o fenómeno "after-hours" em Lisboa). A novidade que traziam era explosiva: o hardstep jungle, um novo estilo de música, rápido, agressivo e muito divertido, que aliava à complexidade e riqueza formal do drum'n'bass uma vitalidade directa que facilmente podia ser adoptada pelos ravers e noctívagos saturados com a tecno ou a house. Paul Bellamy e Zebadee eram alguns dos nomes desta equipa, que não só revelava uma grande qualidade na escolha musical como um grande apuro técnico. Para além dos after-hours, propunham-se a abrir durante as tardes, em que os miúdos podiam mais facilmente frequentar, convivendo ao mesmo tempo com uma inédita paisagem musical. As festas organizadas resultaram todas num fiasco, havia menos pessoas entre o público do que entre a equipa da casa. Numa das últimas madrugadas, encontrei um grupo de pessoas que costumava frequentar o DNA, um pequeno clube do Cacém apenas frequentado por aqueles que não distinguiam as novas formas musicais de uma certa forma de estar na noite diferente dos circuitos habituais. Eles não se integravam no que havia, criavam a sua própria atmosfera de cumplicidades, mas eram poucos e, passadas algumas semanas, A Companhia de Música fechava (mais de um ano depois, o próprio DNA fechava, dispersando-se esse grupo por alguns espaços do Bairro Alto). Ainda no mesmo ano, mas já no Verão, formava-se a Cool Train Crew, que no Johnny Guitar (rebaptizado Ciclone para o efeito) veio desencadear num jovem e diversificado público o interesse pelo jungle e pelo drum'n'bass. O calor de fornalha das sessões no Ciclone, com as pessoas quase por cima umas das outras, e os menos felizes à porta na esperança de poderem entrar, marcava um brutal contraste com o desalento de A Companhia de Música, dando esta situaçao a perceber a triste realidade da descridibilidade electronica do povo portugues e o seu medo em relação a tipos de sons novos e inovadores.




Nesse mesmo ano, depois de ir a uma festa de "Goa-trance" nos arredores de Palmela, dirigi-me a uma festa que se organizava em Brejos de Azeitão. Apesar de ser promovida por uma nova produtora de espectáculos, a VIP Club, a produção da festa era monumentalista, tinha sido escolhido o pavilhão de exposições AERSET, contratados os melhores e mais famosos DJ do X-Club (nessa altura o maior fenómenos de popularidade de música de dança em Portugal), havia ambulâncias e uma equipa enorme de seguranças com um sistema de intercomunicadores que lhes permitia comunicar uns com os outros. O investimento que se tinha feito apontava para milhares de pessoas mas apenas algumas centenas por lá tinham passado. Já era de manhã quando, depois de muito correr ao longo da noite, procurando resolver problemas que seriam infinitamente maiores se tivesse a massa humana por que esperava, me sentei à entrada do recinto com um dos organizadores da festa, Nuno Braz. Era um jovem empresário ainda mal refeito do pesadelo que estava a viver. Esperava chamar o público que habitualmente frequentava as festas do X-Club, tinha investido milhares e agora mal podia conceber o pesadelo em que se enfiara voluntariamente. Como prémio de consolação restavam-lhe os pés a sangrar, uma vez que nem tinha escolhido o calçado mais conveniente. Trocámos números de telefone mas nunca mais soube dele ou da sua produtora.




Com António Cunha à sua frente, a Kaos iniciou em finais de 1992 a actividade de música de dança em Portugal, concentrando-se no centro-norte do país, realizando eventos e iniciando a edição de discos. As festas em castelos de província tornaram-se de tal maneira eufóricas que até convenceram a susceptível imprensa britânica, a viver dos destroços da cena balear (nas ilhas espanholas) e na ressaca das raves, transformadas em lúgubres celebrações do submundo. O nova-iorquino Rob Di Stefano, criador da influente editora Tribal (hoje Twisted) e que desde o início colaborou com a equipa da Kaos, não escondeu o seu entusiasmo, tendo considerado o país um "paraíso" para a cena de música de dança. O que levou a companhia de António Cunha e de Tó Pereira (também conhecido por DJ Vibe) a organizar em 95 uma espécie de "Magical Mistery Tour" dos anos 90, baptizada significativamente de "A Paradise Called Portugal". Tratava-se de uma excursão de uma semana em que todos os dias se realizava uma festa num local diferente. A "pureza" que os estrangeiros encontravam no nascente movimento permitiu à Kaos trazer alguns dos melhores DJ internacionais, que ficavam encantados e "publicitavam" as maravilhas do que em Portugal se estava a criar. A impulsionar a força do movimento, os Underground Sound of Lisbon lançaram um tema, "So get up", que se tornou um sucesso de vendas internacional. Com letra do californiano Darin Pappas (que depois se assumiu como um dos melhores letristas de hip-hop através dos Ithaka), "So get up" celebrava a vida à beira dos dias do apocalipse e era uma mensagem para todos os jovens aprenderem a afirmar-se, mesmo que o dia de amanhã se apresentasse nebuloso. Este discurso foi interiorizado com o tempo e a música de dança mais as suas festas tornou-se uma nova fonte de esperança e de júbilo para uma geração sem causas ou grandes expectativas. Os USL dispersaram-se depois: Rui Silva afirmando-se como produtor da Kaos e remisturador de faixas de pop; Tó Pereira, que já tinha participado nos LX-90 (transição da pop para a dance-music inspirada no fenómeno Madchester, quando os grupos de rock do norte da Inglaterra se entusiasmaram pelo movimento acid-house) afirmou-se depois como o primeiro DJ português no circuito internacional de house.




Por essa altura, outro DJ de renome e que fez parte do grupo inicial da Kaos, João Daniel, criou a Question of Time para lançar discos e organizar festas, motivado pelo sucesso "underground" das sessões de "after-hours" que vinha oferecendo acompanhado de uma equipa de jovens DJ no Climacz, uma discoteca de Lisboa que ficava numa subcave no Largo D. Estefânia. Outra personagem importante foi a sua mulher, a britânica Paula Fox, cujo conhecimento da cena no seu país ajudou a dar os primeiros passos de "dance music" em Portugal. João Daniel viria depois a implementar no Café Central uma vivência menos pesada da música de dança, embora insistindo no tecno-trance. De resto, João Daniel foi um dos primeiros cultores da música de dança como hoje a conhecemos, através do Pravda, uma discoteca que ficava na Caparica. E lançou ainda duas faixas relevantes, "The Way" e "... To Eden", revelando em cada uma destas, dois produtores de talento, respectivamente A. Paul e Model 9000 (Nuno Lopes, que também lançou o duplo-maxi "Perceptions", estando à frente, três anos depois, do projecto "Noites Longas" da Sony, em que eram assinadas remisturas de dança da música popular portuguesa).

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