Friday, November 2, 2007

Reportagem Blitz de '99 Sobre o Turntablism Em Portugal


Há coisa de seis meses atrás foi publicado um artigo em que, de alguma forma, se anunciava a novel arte do turntablism, conceito que, em português, pode muito bem ser traduzido por giradisquismo. Proveniente do movimento hip-hop, o giradisquismo assenta na utilização dos pratos de gira-discos como instrumento musical exclusivo, alertando-se na altura para a obra de alguns dos grupos (ou crews, na terminologia original) que mais se tinham destacado, casos dos Invisibl Skratch Piklz, X-Ecutioners ou Beat Junkies e até para os seus protagonistas mais afamados, como acontece com Q-Bert – o pioneiro -, Rob Swif ou Mix Master Mike, todos eles com direito a editar álbuns em nome próprio.

Por essa altura, em Portugal, o giradisquismo era um fenómeno quase desconhecido, mas nos meios mais marginais já existia alguma movimentação e até um colectivo de DJ, os Scratchin’ Furious, que ameaça saltar para as luzes da ribalta a qualquer momento. Este colectivo iniciou as actividades há cerca de ano e meio, quando Cruzfader, um brasileiro que até então residia em França, regressou a Portugal e reencontrou Nel Assassin. Juntos fizeram questão de levar para a frente o primeiro colectivo português de giradisquismo, tendo recentemente recrutado para as suas fileiras DJ Poison. Por cá, tiveram que começar praticamente do zero. Se DJ Cruzfader já tem uma experiência longa de cerca de doze anos de convívio com o movimento hip-hop, devido ao facto de ter morado em França, país que geralmente é conhecido como a segunda pátria do hip-hop, por cá as coisas desenvolviam-se de uma forma mais lenta. Nel Assassin fala sobretudo das dificuldades e barreiras ao desenvolvimento de uma actividade como o turntablism. Não só é difícil adquirir o material certo para prosseguir a actividade – os universalmente consagrados pratos Technics da série 1200, as agulhas e os crossfaders que é preciso trocar de 2 em 2 meses – como é difícil estabelecer uma ligação com um público que desconhece quase por completo a arte do giradisquismo. «A agulha já sabemos à partida que se vai estragar em 2 ou 3 meses. As novas custam 5 contos. Agora com os faders e o crossfader é que é pior. Batem muito e estragam-se facilmente», conta o Poison secundado por Assassin, que diz que um crossfader nas suas mãos dura 2 meses enquanto que um DJ tradicional de dance music pode usar o mesmo durante toda a vida.

E as dificuldades são grandes ou enormes , até porque, adianta DJ Cruzfader, é necessária uma dedicação quase exclusiva a esta causa, confessando ainda que chegou a praticar cerca de «cinco horas por dia». Por outro lado, tanto Cruzfader como Nel Assassin são unânimes em considerar a sonoridade proveniente dos gira-discos como «muito futurista», criando dificuldades várias aos ouvintes menos conhecedores dos meandros em que se desenvolve o turntablism, dado o teor «pesado e agressivo» daquela música. Por outro lado, ao contrário do virtuosismo praticado com instrumentos musicais mais convencionais, como a guitarra eléctrica, o giradisquismo, dada a colocação na horizontal dos pratos, não oferece ao espectador uma referência visual tão clara que permita apreciar o manancial de técnicas interpretadas pelos DJ.

E não são poucas nem simples essas técnicas de manipulação dos som. Quando Cruzfader fala de termos como «flare» (uma técnica em que 3 dedos passam sucessivamente pelo crossfader), «drag» (um eco produzido por sacudidelas do fader que ele aplica em “Shapeless”, um dos temas do novo EP dos Coldfinger), «baby d», «beat juggling» (transformar 2 ritmos em câmara lenta), «scribble» ou «stab», como alguns dos movimentos praticados com os gira-discos e a mesa de mistura, percebe-se não só a complexidade dessas técnicas, como as potencialidades que os turntablists conseguem extrair dos seus instrumentos de trabalho: «só com uma mesa e um gira-discos conseguimos fazer 15 minutos de animação».

Tal como Q-Bert, um dos principais senão o mais importante divulgador e exprimentalista do turntablism, os Scratchin’ Furious fazem questão de distinguir entre a sua actividade e a dos DJ que tocam em festas e «se limitam a misturar e a passar música». Com o giradisquismo a coisa pia mais fino, e a ideia é, precisamente, produzir música original fazendo uso exclusivo dos gira-discos e da mesa de mistura. Nos Scratchin’ Furious, como nos restantes colectivos de giradisquistas, há papéis atribuídos a cada um dos executantes que devem ser escrupulosamente cumpridos. Se um dos elementos é o responsável pela base rítmica – utilizando discos vulgares de hip-hop ou mesmo discos unicamente destinados ao turntablism -, outro dos elementos será o responsável pelo scratch, enquanto o outro acompanha, introduzindo melodias, em sucessivas operações de «cut & paste» de extrema complexidade, que chegam a lembrar a formação de uma tradicional banda de música em que existe um baterista, um guitarrista e um baixista, cabendo a cada um a sua função específica. Acontece que nos colectivos de giradisquismo estes papéis são mais flexíveis, variando sucessivamente as funções de cada membro, que numa ocasião pode estar a criar uma batida e na outra pode estar a fazer o scratch.

Como heróis da sua arte, os Scratchin’ Furious elegem Q-Bert dos Invisibl Skratch Piklz - «ele é um génio e é o único homem do mundo que tem 3 campeonatos DMC, além de ter sido ele quem inventou a expressão turntablism» - Mix Master Mike, também dos Invisibl Skratch Piklz e recentemente contratado pelos Beastie Boys e Babu dos Beat Junkies. «O Q-Bert trouxe muita coisa nova. Ele foi o primeiro DJ a fazer scratch com o braço e a partir a agulha; fez também o helicóptero e foi quem pôs em prática o “flare” que, como o nome indica, foi inventado por DJ Flare», explica Cruzfader, actualmente a fazer parte dos Coldfinger, banda que se apressa para lançar o primeiro EP. «Há um tema dos Coldfinger em que faço a batida toda, só com um, disco, mas a minha participação é exactamente igual a de qualquer outro músico que toca no projecto.» Apesar da sua eminente participação nos Coldfinger, o grande projecto de Cruzfader é fazer regressar a Portugal a DMC, instalar uma delegação em Portugal e começar a organizar campeonato», única forma de o turntablism poder evoluir por estas paragens. Isto além da sua actividade de produtor que também já está em desenvolvimento.

Por Miguel Francisco Cadete para o "Blitz"

No comments: